segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Miséria atual: breve síntese

18. É a hora de dar espaço à imaginação a propósito da misericórdia para dar vida a muitas obras novas, fruto da graça. A Igreja precisa de narrar hoje aqueles «muitos outros sinais» que Jesus realizou e que «não estão escritos» (Jo 20, 30), de modo que sejam expressão eloquente da fecundidade do amor de Cristo e da comunidade que vive d’Ele. Já se passaram mais de dois mil anos, e todavia as obras de misericórdia continuam a tornar visível a bondade de Deus.

Ainda hoje populações inteiras padecem a fome e a sede, sendo grande a preocupação suscitada pelas imagens de crianças que não têm nada para se alimentar. Multidões de pessoas continuam a emigrar dum país para outro à procura de alimento, trabalho, casa e paz. A doença, nas suas várias formas, é um motivo permanente de aflição que requer ajuda, consolação e apoio. Os estabelecimentos prisionais são lugares onde muitas vezes, à pena restritiva da liberdade, se juntam transtornos por vezes graves devido às condições desumanas de vida. O analfabetismo ainda é muito difuso, impedindo aos meninos e meninas de se formarem, expondo-os a novas formas de escravidão. A cultura do individualismo exacerbado, sobretudo no Ocidente, leva a perder o sentido de solidariedade e responsabilidade para com os outros. O próprio Deus continua a ser hoje um desconhecido para muitos; isto constitui a maior pobreza e o maior obstáculo para o reconhecimento da dignidade inviolável da vida humana.

Em suma, as obras de misericórdia corporal e espiritual constituem até aos nossos dias a verificação da grande e positiva incidência da misericórdia como valor social. Com efeito, esta impele a arregaçar as mangas para restituir dignidade a milhões de pessoas que são nossos irmãos e irmãs, chamados connosco a construir uma «cidade fiável».[19]

Trecho extraído de:
https://w2.vatican.va/content/francesco/pt/apost_letters/documents/papa-francesco-lettera-ap_20161120_misericordia-et-misera.html

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Vida familiar como caminho de união com Deus

313. O amor assume matizes diferentes, segundo o estado de vida a que cada um foi chamado. Várias décadas atrás, o Concílio Vaticano II, a propósito do apostolado dos leigos, punha em realce a espiritualidade que brota da vida familiar. Dizia que a espiritualidade dos leigos «deverá assumir características especiais» próprias, nomeadamente a partir do «estado do matrimónio e da família»,[367] e que os cuidados familiares não devem ser alheios ao seu estilo de vida espiritual.[368] Por isso, vale a pena deter-nos brevemente a descrever algumas características fundamentais desta espiritualidade específica que se desenrola no dinamismo das relações da vida familiar.

314. Sempre falamos da inabitação de Deus no coração da pessoa que vive na sua graça. Hoje podemos dizer também que a Trindade está presente no templo da comunhão matrimonial. Assim como habita nos louvores do seu povo (cf. Sl 22/21, 4), assim também vive intimamente no amor conjugal que Lhe dá glória.

315. A presença do Senhor habita na família real e concreta, com todos os seus sofrimentos, lutas, alegrias e propósitos diários. Quando se vive em família, é difícil fingir e mentir, não podemos mostrar uma máscara. Se o amor anima esta autenticidade, o Senhor reina nela com a sua alegria e a sua paz. A espiritualidade do amor familiar é feita de milhares de gestos reais e concretos. Deus tem a sua própria habitação nesta variedade de dons e encontros que fazem maturar a comunhão. Esta dedicação une «o humano e o divino»,[369] porque está cheia do amor de Deus. Em suma, a espiritualidade matrimonial é uma espiritualidade do vínculo habitado pelo amor divino.

316. A comunhão familiar bem vivida é um verdadeiro caminho de santificação na vida ordinária e de crescimento místico, um meio para a união íntima com Deus. Com efeito, as exigências fraternas e comunitárias da vida em família são uma ocasião para abrir cada vez mais o coração, e isto torna possível um encontro sempre mais pleno com o Senhor. Lê-se, na Palavra de Deus, que «quem tem ódio ao seu irmão está nas trevas» (1 Jo 2, 11), «permanece na morte» (1 Jo 3, 14) e «não chegou a conhecer a Deus» (1 Jo 4, 8). O meu antecessor, Bento XVI, disse que «o fechar os olhos diante do próximo torna cegos também diante de Deus»[370] e que, fundamentalmente, o amor é a única luz que «ilumina incessantemente um mundo às escuras». [371] Somente «se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós e o seu amor chegou à perfeição em nós» (1 Jo 4, 12). Dado que «a pessoa humana tem uma inata e estrutural dimensão social»[372] e «a primeira e originária expressão da dimensão social da pessoa é o casal e a família»,[373] a espiritualidade encarna-se na comunhão familiar. Por isso, aqueles que têm desejos espirituais profundos não devem sentir que a família os afasta do crescimento na vida do Espírito, mas é um percurso de que o Senhor Se serve para os levar às alturas da união mística.

Trecho extraído de:
http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20160319_amoris-laetitia.html#_ftn238

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

As normas e o discernimento (Norma geral e compreensão do particular)

304. É mesquinho deter-se a considerar apenas se o agir duma pessoa corresponde ou não a uma lei ou norma geral, porque isto não basta para discernir e assegurar uma plena fidelidade a Deus na existência concreta dum ser humano. Peço encarecidamente que nos lembremos sempre de algo que ensina São Tomás de Aquino e aprendamos a assimilá-lo no discernimento pastoral: «Embora nos princípios gerais tenhamos o carácter necessário, todavia à medida que se abordam os casos particulares, aumenta a indeterminação (…). No âmbito da acção, a verdade ou a rectidão prática não são iguais em todas as aplicações particulares, mas apenas nos princípios gerais; e, naqueles onde a rectidão é idêntica nas próprias acções, esta não é igualmente conhecida por todos. (...) Quanto mais se desce ao particular, tanto mais aumenta a indeterminação».[347] É verdade que as normas gerais apresentam um bem que nunca se deve ignorar nem transcurar, mas, na sua formulação, não podem abarcar absolutamente todas as situações particulares. Ao mesmo tempo é preciso afirmar que, precisamente por esta razão, aquilo que faz parte dum discernimento prático duma situação particular não pode ser elevado à categoria de norma. Isto não só geraria uma casuística insuportável, mas também colocaria em risco os valores que se devem preservar com particular cuidado.[348]

305. Por isso, um pastor não pode sentir-se satisfeito apenas aplicando leis morais àqueles que vivem em situações «irregulares», como se fossem pedras que se atiram contra a vida das pessoas. É o caso dos corações fechados, que muitas vezes se escondem até por detrás dos ensinamentos da Igreja «para se sentar na cátedra de Moisés e julgar, às vezes com superioridade e superficialidade, os casos difíceis e as famílias feridas».[349] Na mesma linha se pronunciou a Comissão Teológica Internacional: «A lei natural não pode ser apresentada como um conjunto já constituído de regras que se impõem a priori ao sujeito moral, mas é uma fonte de inspiração objectiva para o seu processo, eminentemente pessoal, de tomada de decisão».[350] Por causa dos condicionalismos ou dos factores atenuantes, é possível que uma pessoa, no meio duma situação objectiva de pecado – mas subjectivamente não seja culpável ou não o seja plenamente –, possa viver em graça de Deus, possa amar e possa também crescer na vida de graça e de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja.[351] O discernimento deve ajudar a encontrar os caminhos possíveis de resposta a Deus e de crescimento no meio dos limites. Por pensar que tudo seja branco ou preto, às vezes fechamos o caminho da graça e do crescimento e desencorajamos percursos de santificação que dão glória a Deus. Lembremo-nos de que «um pequeno passo, no meio de grandes limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida externamente correcta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar sérias dificuldades».[352] A pastoral concreta dos ministros e das comunidades não pode deixar de incorporar esta realidade.

306. Em toda e qualquer circunstância, perante quem tenha dificuldade em viver plenamente a lei de Deus, deve ressoar o convite a percorrer a via caritatis. A caridade fraterna é a primeira lei dos cristãos (cf. Jo 15, 12; Gal 5, 14). Não esqueçamos a promessa feita na Sagrada Escritura: «Acima de tudo, mantende entre vós uma intensa caridade, porque o amor cobre a multidão de pecados» (1 Ped 4, 8); «redime o teu pecado pela justiça; e as tuas iniquidades, pela piedade para com os infelizes» (Dn 4, 24); «a água apaga o fogo ardente, e a esmola expia o pecado» (Sir 3, 30). O mesmo ensina também Santo Agostinho: «Tal como, em perigo de incêndio, correríamos a buscar água para o apagar (...), o mesmo deveríamos fazer quando nos turvamos porque, da nossa palha, irrompeu a chama do pecado; assim, quando se nos proporciona a ocasião de uma obra cheia de misericórdia, alegremo-nos por ela como se fosse uma fonte que nos é oferecida e da qual podemos tomar a água para extinguir o incêndio».[353]

Trecho extraído de:
http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20160319_amoris-laetitia.html#_ftn238

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Sim à educação sexual

280. O Concílio Vaticano II apresentava a necessidade de «uma educação sexual positiva e prudente» oferecida às crianças e adolescentes «à medida que vão crescendo» e «tendo em conta os progressos da psicologia, pedagogia e didática».[301]Deveríamos perguntar-nos se as nossas instituições educativas assumiram este desafio. É difícil pensar na educação sexual num tempo em que se tende a banalizar e empobrecer a sexualidade. Só se poderia entender no contexto duma educação para o amor, para a doação mútua; assim, a linguagem da sexualidade não acabaria tristemente empobrecida, mas esclarecida. É possível cultivar o impulso sexual num percurso de conhecimento de si mesmo e no desenvolvimento duma capacidade de autodomínio, que podem ajudar a trazer à luz capacidades preciosas de alegria e encontro amoroso.

281. A educação sexual oferece informação, mas sem esquecer que as crianças e os jovens ainda não alcançaram plena maturidade. A informação deve chegar no momento apropriado e de forma adequada à fase que vivem. Não é útil saturá-los de dados, sem o desenvolvimento do sentido crítico perante uma invasão de propostas, perante a pornografia descontrolada e a sobrecarga de estímulos que podem mutilar a sexualidade. Os jovens devem poder dar-se conta de que são bombardeados por mensagens que não procuram o seu bem e o seu amadurecimento. Faz falta ajudá-los a identificar e procurar as influências positivas, ao mesmo tempo que se afastam de tudo o que desfigura a sua capacidade de amar. De igual modo, devemos aceitar que «a necessidade duma linguagem nova e mais adequada se apresenta especialmente no momento de introduzir as crianças e os adolescentes no tema da sexualidade».[302]

282. Tem um valor imenso uma educação sexual que cuide um são pudor, embora hoje alguns considerem que é questão doutros tempos. É uma defesa natural da pessoa que resguarda a sua interioridade e evita ser transformada em mero objecto. Sem o pudor, podemos reduzir o afecto e a sexualidade a obsessões que nos concentram apenas nos órgãos genitais, em morbosidades que deformam a nossa capacidade de amar e em várias formas de violência sexual que nos levam a ser tratados de forma desumana ou a prejudicar os outros.

283. Frequentemente a educação sexual concentra-se no convite a «proteger-se», procurando um «sexo seguro». Estas expressões transmitem uma atitude negativa a respeito da finalidade procriadora natural da sexualidade, como se um possível filho fosse um inimigo de que é preciso proteger-se. Deste modo promove-se a agressividade narcisista, em vez do acolhimento. É irresponsável qualquer convite aos adolescentes para que brinquem com os seus corpos e desejos, como se tivessem a maturidade, os valores, o compromisso mútuo e os objetivos próprios do matrimônio. Assim, são levianamente encorajados a utilizar a outra pessoa como objecto de experiências para compensar carências e grandes limites. É importante, pelo contrário, ensinar um percurso pelas diversas expressões do amor, o cuidado mútuo, a ternura respeitosa, a comunicação rica de sentido. Com efeito, tudo isto prepara para uma doação íntegra e generosa de si mesmo que se expressará, depois dum compromisso público, na entrega dos corpos. Assim a união sexual no matrimônio aparecerá como sinal dum compromisso totalizante, enriquecido por todo o caminho anterior.

284. É preciso não enganar os jovens, levando-os a confundir os planos: a atracão «cria, por um momento, a ilusão da “união”, mas, sem amor, tal união deixa os desconhecidos tão separados como antes».[303] A linguagem do corpo requer uma aprendizagem paciente que permita interpretar e educar os próprios desejos em ordem a uma entrega de verdade. Quando se pretende entregar tudo duma vez, é possível que não se entregue nada. Uma coisa é compreender as fragilidades da idade ou as suas confusões, outra é encorajar os adolescentes a prolongarem a imaturidade da sua forma de amar. Mas, quem fala hoje destas coisas? Quem é capaz de tomar os jovens a sério? Quem os ajuda a preparar-se seriamente para um amor grande e generoso? Não se toma a sério a educação sexual.

285. A educação sexual deveria incluir também o respeito e a valorização da diferença, que mostra a cada um a possibilidade de superar o confinamento nos próprios limites para se abrir à aceitação do outro. Para além de compreensíveis dificuldades que cada um possa viver, é preciso ajudar a aceitar o seu corpo como foi criado, porque «uma lógica de domínio sobre o próprio corpo transforma-se numa lógica, por vezes subtil, de domínio sobre a criação. (...) Também é necessário ter apreço pelo próprio corpo na sua feminilidade ou masculinidade, para se poder reconhecer a si mesmo no encontro com o outro que é diferente. Assim, é possível aceitar com alegria o dom específico do outro ou da outra, obra de Deus criador, e enriquecer-se mutuamente».[304] Só perdendo o medo à diferença é que uma pessoa pode chegar a libertar-se da imanência do próprio ser e do êxtase por si mesmo. A educação sexual deve ajudar a aceitar o próprio corpo, de modo que a pessoa não pretenda «cancelar a diferença sexual, porque já não sabe confrontar-se com ela».[305]

286. Também não se pode ignorar que, na configuração do próprio modo de ser – feminino ou masculino –, não confluem apenas factores biológicos ou genéticos, mas uma multiplicidade de elementos que têm a ver com o temperamento, a história familiar, a cultura, as experiências vividas, a formação recebida, as influências de amigos, familiares e pessoas admiradas, e outras circunstâncias concretas que exigem um esforço de adaptação. É verdade que não podemos separar o que é masculino e feminino da obra criada por Deus, que é anterior a todas as nossas decisões e experiências e na qual existem elementos biológicos que é impossível ignorar. Mas também é verdade que o masculino e o feminino não são qualquer coisa de rígido. Por isso é possível, por exemplo, que o modo de ser masculino do marido possa adaptar-se de maneira flexível à condição laboral da esposa; o facto de assumir tarefas domésticas ou alguns aspectos da criação dos filhos não o torna menos masculino nem significa um falimento, uma capitulação ou uma vergonha. É preciso ajudar as crianças a aceitar como normais estes «intercâmbios» sadios que não tiram dignidade alguma à figura paterna. A rigidez torna-se um exagero do masculino ou do feminino, e não educa as crianças e os jovens para a reciprocidade encarnada nas condições reais do matrimônio. Tal rigidez, por seu lado, pode impedir o desenvolvimento das capacidades de cada um, tendo-se chegado ao ponto de considerar pouco masculino dedicar-se à arte ou à dança e pouco feminino desempenhar alguma tarefa de chefia. Graças a Deus, isto mudou; mas, nalguns lugares, certas ideias inadequadas continuam a condicionar a legítima liberdade e a mutilar o autêntico desenvolvimento da identidade concreta dos filhos e das suas 
potencialidades.

Trecho extraído de http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20160319_amoris-laetitia.html#_ftn238 

terça-feira, 25 de outubro de 2016

A formação ética dos filhos

263. Os pais necessitam também da escola para assegurar uma instrução de base aos seus filhos, mas a formação moral deles nunca a podem delegar totalmente. O desenvolvimento afetivo e ético duma pessoa requer uma experiência fundamental: crer que os próprios pais são dignos de confiança. Isto constitui uma responsabilidade educativa: com o carinho e o testemunho, gerar confiança nos filhos, inspirar-lhes um respeito amoroso. Quando um filho deixa de sentir que é precioso para seus pais, embora imperfeito, ou deixa de notar que nutrem uma sincera preocupação por ele, isto cria feridas profundas que causam muitas dificuldades no seu amadurecimento. Esta ausência, este abandono afetivo provoca um sofrimento mais profundo do que a eventual correção recebida por uma má ação.

264. A tarefa dos pais inclui uma educação da vontade e um desenvolvimento de hábitos bons e tendências afetivas para o bem. Isto implica que se apresentem como desejáveis os comportamentos a aprender e as tendências a fazer maturar. Mas trata-se sempre de um processo que vai da imperfeição para uma plenitude maior. O desejo de se adaptar à sociedade ou o hábito de renunciar a uma satisfação imediata para se adequar a uma norma e garantir uma boa convivência já é, em si mesmo, um valor inicial que cria disposições para se elevar depois rumo a valores mais altos. A formação moral deveria realizar-se sempre com métodos ativos e com um diálogo educativo que integre a sensibilidade e a linguagem própria dos filhos. Além disso, esta formação deve ser realizada de forma indutiva, de modo que o filho possa chegar a descobrir por si mesmo a importância de determinados valores, princípios e normas, em vez de lhos impor como verdades indiscutíveis.

265. Para agir bem, não basta «julgar de modo adequado» ou saber com clareza aquilo que se deve fazer, embora isso seja prioritário. Com efeito, muitas vezes somos incoerentes com as nossas próprias convicções, mesmo quando são sólidas. Há ocasiões em que, por mais que a consciência nos dite determinado juízo moral, têm mais poder outras coisas que nos atraem; isto acontece, se não conseguirmos que o bem individuado pela mente se radique em nós como uma profunda inclinação afetiva, como um gosto pelo bem que pese mais do que outros atrativos e nos faça perceber que aquilo que individuamos como bem é tal também «para nós» aqui e agora. Uma formação ética válida implica mostrar à pessoa como é conveniente, para ela mesma, agir bem. Muitas vezes, hoje, é ineficaz pedir algo que exija esforço e renúncias, sem mostrar claramente o bem que se poderia alcançar com isso.

266. É necessário maturar hábitos. Os próprios hábitos adquiridos em criança têm uma função positiva, ajudando a traduzir em comportamentos externos sadios e estáveis os grandes valores interiorizados. Uma pessoa pode possuir sentimentos sociáveis e uma boa disposição para com os outros, mas se não foi habituada durante muito tempo, por insistência dos adultos, a dizer «por favor», «com licença», «obrigado», a tal boa disposição interior não se traduzirá facilmente nestas expressões. O fortalecimento da vontade e a repetição de determinadas ações constroem a conduta moral; mas, sem a repetição consciente, livre e elogiada de determinados comportamentos bons, nunca se chega a educar tal conduta. As motivações ou a atração que sentimos por um determinado valor, não se tornam uma virtude sem estes atos adequadamente motivados.

267 A liberdade é algo de grandioso, mas podemos perdê-la. A educação moral é cultivar a liberdade através de propostas, motivações, aplicações práticas, estímulos, prêmios, exemplos, modelos, símbolos, reflexões, exortações, revisões do modo de agir e diálogos que ajudem as pessoas a desenvolver aqueles princípios interiores estáveis que movem a praticar espontaneamente o bem. A virtude é uma convicção que se transformou num princípio interior e estável do agir. Assim, a vida virtuosa constrói a liberdade, fortifica-a e educa-a, evitando que a pessoa se torne escrava de inclinações compulsivas desumanizadoras e anti-sociais. Com efeito, a própria dignidade humana exige que cada um «proceda segundo a própria consciência e por livre adesão, ou seja, movido e induzido pessoalmente desde dentro».[293]

Trecho extraído de http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20160319_amoris-laetitia.html#_ftn238

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Velhas feridas

239. É compreensível que, nas famílias, haja muitas dificuldades, quando um dos seus membros não amadureceu a sua maneira de relacionar-se, porque não curou feridas dalguma etapa da sua vida. A própria infância e a própria adolescência mal vividas são terreno fértil para crises pessoais que acabam por afetar o matrimônio. Se todos fossem pessoas que amadureceram normalmente, as crises seriam menos frequentes e menos dolorosas. A verdade, porém, é que às vezes as pessoas precisam de realizar aos quarenta anos um amadurecimento atrasado que deveria ter sido alcançado no fim da adolescência. Às vezes ama-se com um amor egocêntrico próprio da criança, fixado numa etapa onde a realidade é distorcida e se vive o capricho de que tudo deva girar à volta do próprio eu. É um amor insaciável, que grita e chora quando não obtém aquilo que deseja. Outras vezes ama-se com um amor fixado na fase da adolescência, caracterizado pelo confronto, a crítica ácida, o hábito de culpar os outros, a lógica do sentimento e da fantasia, onde os outros devem preencher os nossos vazios ou apoiar os nossos caprichos.

240. Muitos terminam a sua infância sem nunca se terem sentido amados incondicionalmente, e isto compromete a sua capacidade de confiar e entregar-se. Uma relação mal vivida com os seus pais e irmãos, que nunca foi curada, reaparece e danifica a vida conjugal. Então é preciso fazer um percurso de libertação, que nunca se enfrentou. Quando a relação entre os cônjuges não funciona bem, antes de tomar decisões importantes, convém assegurar-se de que cada um tenha feito este caminho de cura da própria história. Isto exige que se reconheça a necessidade de ser curado, que se peça com insistência a graça de perdoar e perdoar-se, que se aceite ajuda, se procurem motivações positivas e se tente sempre de novo. Cada um deve ser muito sincero consigo mesmo, para reconhecer que o seu modo de viver o amor tem estas imaturidades. Por mais evidente que possa parecer que toda a culpa seja do outro, nunca é possível superar uma crise esperando que apenas o outro mude. É preciso também questionar-se a si mesmo sobre as coisas que poderia pessoalmente amadurecer ou curar para favorecer a superação do conflito.

Trecho extraído de http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20160319_amoris-laetitia.html#_ftn238

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Acompanhamento nos primeiros anos da vida matrimonial

217. Temos de reconhecer como um grande valor que se compreenda que o matrimônio é uma questão de amor: só se podem casar aqueles que se escolhem livremente e se amam. Apesar disso, se o amor se reduzir a mera atracão ou a uma vaga afetividade, isto faz com que os cônjuges sofram duma extraordinária fragilidade quando a afetividade entra em crise ou a atracão física diminui. Uma vez que estas confusões são frequentes, torna-se indispensável o acompanhamento dos esposos nos primeiros anos de vida matrimonial, para enriquecer e aprofundar a decisão consciente e livre de se pertencerem e amarem até ao fim. Muitas vezes o tempo de noivado não é suficiente, a decisão de casar-se apressa-se por várias razões e, como se não bastasse, atrasou a maturação dos jovens. Assim os recém-casados têm de completar aquele percurso que deveria ter sido feito durante o noivado.

218. Por outro lado, quero insistir que um desafio da pastoral familiar é ajudar a descobrir que o matrimónio não se pode entender como algo acabado. A união é real, é irrevogável e foi confirmada e consagrada pelo sacramento do matrimónio; mas, ao unir-se, os esposos tornam-se protagonistas, senhores da sua própria história e criadores dum projecto que deve ser levado para a frente conjuntamente. O olhar volta-se para o futuro, que é preciso construir dia-a-dia com a graça de Deus e, por isso mesmo, não se pretende do cônjuge que seja perfeito. É preciso pôr de lado as ilusões e aceitá-lo como é: inacabado, chamado a crescer, em caminho. Quando o olhar sobre o cônjuge é constantemente crítico, isto indica que o matrimônio não foi assumido também como um projecto a construir juntos, com paciência, compreensão, tolerância e generosidade. Isto faz com que o amor seja substituído pouco a pouco por um olhar inquisidor e implacável, pelo controle dos méritos e direitos de cada um, pelas reclamações, a competição e a autodefesa. Deste modo tornam-se incapazes de se apoiarem um ao outro para o amadurecimento de ambos e para o crescimento da união. Aos novos cônjuges, é necessário apresentar isto com clareza realista desde o início, de modo que tomem consciência de que estão apenas a começar. O «sim» que deram um ao outro é o início dum itinerário, cujo objectivo se propõe superar as circunstâncias que surgirem e os obstáculos que se interpuserem. A bênção recebida é uma graça e um impulso para este caminho sempre aberto. Habitualmente ajuda sentar-se a dialogar para elaborar o seu projecto concreto com os seus objectivos, meios, detalhes.

219. Lembro-me dum refrão que dizia que a água estagnada corrompe-se, estraga-se. O mesmo acontece com a vida do amor nos primeiros anos do matrimónio quando fica estagnada, cessa de mover-se, perde aquela inquietude sadia que a faz avançar. A dança conduzida com aquele amor jovem, a dança com aqueles olhos iluminados pela esperança, não deve parar. No noivado e nos primeiros anos de matrimónio, é a esperança que tem em si a força do fermento, que faz olhar para além das contradições, conflitos, contingências, que sempre faz ver mais além; é ela que põe em movimento a ânsia de se manter num caminho de crescimento. A mesma esperança convida-nos a viver em cheio o presente, colocando o coração na vida familiar, porque a melhor forma de preparar e consolidar o futuro é viver bem o presente.

220. O caminho implica passar por diferentes etapas, que convidam a doar-se com generosidade: do impacto inicial caracterizado por uma atracção decididamente sensível, passa-se à necessidade do outro sentido como parte da vida própria. Daqui passa-se ao gosto da pertença mútua, seguido pela compreensão da vida inteira como um projecto de ambos, pela capacidade de colocar a felicidade do outro acima das necessidades próprias, e pela alegria de ver o próprio matrimónio como um bem para a sociedade. O amadurecimento do amor implica também aprender a «negociar». Não se trata duma atitude interesseira nem dum jogo de tipo comercial, mas, em última análise, dum exercício do amor recíproco, já que esta negociação é um entrelaçado de recíprocas ofertas e renúncias para o bem da família. Em cada nova etapa da vida matrimonial, é preciso sentar-se e negociar novamente os acordos, de modo que não haja vencedores nem vencidos, mas ganhem ambos. No lar, as decisões não se tomam unilateralmente, e ambos compartilham a responsabilidade pela família; mas cada lar é único e cada síntese conjugal é diferente.

221. Uma das causas que leva a rupturas matrimoniais é ter expectativas demasiado altas sobre a vida conjugal. Quando se descobre a realidade mais limitada e problemática do que se sonhara, a solução não é pensar imediata e irresponsavelmente na separação, mas assumir o matrimónio como um caminho de amadurecimento, onde cada um dos cônjuges é um instrumento de Deus para fazer crescer o outro. É possível a mudança, o crescimento, o desenvolvimento das potencialidades boas que cada um traz dentro de si. Cada matrimónio é uma «história de salvação», o que supõe partir duma fragilidade que, graças ao dom de Deus e a uma resposta criativa e generosa, pouco a pouco vai dando lugar a uma realidade cada vez mais sólida e preciosa. Talvez a maior missão dum homem e duma mulher no amor seja esta: a de se tornarem, um ao outro, mais homem e mais mulher. Fazer crescer é ajudar o outro a moldar-se na sua própria identidade. Por isso o amor é artesanal. Quando se lê a passagem da Bíblia sobre a criação do homem e da mulher, primeiro vê-se Deus que plasma o homem (cf. Gn 2, 7), depois dá-Se conta de que falta alguma coisa essencial e plasma a mulher, e então vê a surpresa do homem: «Ah! Agora sim! Esta sim!» E, em seguida, quase nos parece ouvir aquele estupendo diálogo no qual o homem e a mulher fazem a mútua descoberta. Com efeito, mesmo nos momentos difíceis, o outro volta a surpreender e abrem-se novas portas para se reencontrar, como se fosse a primeira vez; e, em cada nova etapa, tornam a «plasmar-se» um ao outro. O amor faz com que um espere pelo outro, exercitando aquela paciência própria de artesão, que herdou de Deus.

222. O acompanhamento deve encorajar os esposos a serem generosos na comunicação da vida. «De acordo com o carácter pessoal e humanamente completo do amor conjugal, o justo caminho para o planeamento familiar pressupõe um diálogo consensual entre os esposos, o respeito dos tempos e a consideração da dignidade de ambos os membros do casal. Neste sentido, é preciso redescobrir a Encíclica Humanae vitae (cf. nn. 10-14) e a Exortação apostólica Familiaris consortio (cf. nn. 14; 28-35) para se reavivar a disponibilidade a procriar, contrastando uma mentalidade frequentemente hostil à vida. (...) A opção da paternidade responsável pressupõe a formação da consciência que é “o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser” (Gaudium et spes, 16). Quanto mais procurarem os esposos ouvir, na sua consciência, a Deus e os seus mandamentos (cf. Rm 2, 15) e se fizerem acompanhar espiritualmente, tanto mais a sua decisão será intimamente livre de um arbítrio subjectivo e da acomodação às modas de comportamento no seu ambiente».[248] Continua a ser válido o que ficou dito, com clareza, no Concílio Vaticano II: os cônjuges, «de comum acordo e com esforço comum, formarão rectamente a própria consciência, tendo em conta o seu bem próprio e o dos filhos já nascidos ou que prevêem virão a nascer, sabendo ver as condições de tempo e da própria situação e tendo, finalmente, em consideração o bem da comunidade familiar, da sociedade temporal e da própria Igreja. São os próprios esposos que, em última instância, devem diante de Deus tomar esta decisão».[249] Por outro lado, «deve-se promover o uso dos métodos baseados nos “ritmos naturais da fecundidade” (Humanae vitae, 11). Ponha-se em evidência também que “estes métodos respeitam o corpo dos esposos, estimulam a ternura entre eles e favorecem a educação duma liberdade autêntica” (Catecismo da Igreja Católica, 2370), insistindo sempre que os filhos são um dom maravilhoso de Deus, uma alegria para os pais e para a Igreja. Através deles, o Senhor renova o mundo».[250]